‘“O tempo é como um rio, um fluxo eterno de todos os seres vivos. Assim que algo acontece logo passa e outra coisa sobrevém, e logo passará também. — Marco Aurélio, Meditações
O Museu Nacional de Brasília é mais uma surpreendente releitura de Oscar Niemeyer, uma variação da oca, a peculiar compreensão formal de certos povos indígenas do que seja um abrigo, muito antes da Europa desembarcar na costa brasileira impondo ortogonalidade à paisagem. Adepto da curva, Niemeyer vergou a racionalidade sem abandonar o branco, o halo de pureza perseguido pela arquitetura moderna. A rampa de entrada do museu eleva-se rente ao chão como uma flecha, atravessa a oca, ultrapassa-a para depois, numa reviravolta súbita, rompê-la uma vez mais. Sob a rampa, à vista de quem sobe em direção ao museu, contrastando com seu branco luminoso de casca de ovo, Sonia Dias Souza aninhou Uníssono, oito esferas marrom-claras de tamanhos variados, apoiadas em montículos de terra, distribuídas à frente de uma parede da mesma cor, base de texto Da terra que somos. Esta última dá título à exposição, a declaração de uma artista desde criança intrigada pela origem da vida, o ímpeto energético que a engendrou, cuja poética assenta-se na produção de “um espaço de pura potencialidade, onde nada é definitivo e tudo está em estado de possibilidade”, como as esferas — seriam sementes, planetas? — de terra de Uníssono, plenas de latência.
Diversos quanto aos materiais e formas, seus trabalhos são aparentados com pinturas, relevos, esculturas e instalações — “aparentados” porque tentar classificá-los implicaria reduzir sua dimensão enigmática, fechando a cadeia de conexões sugeridas. Contudo, todos indicam a circularidade entre nós e tudo que nos rodeia, o constante estado de vir a ser das coisas, de onde vertem-se vapores e líquidos, sementes brotam, raízes de troncos e galhos — finos e grossos, espichados e truncados, recobertos de folhas, espinhos, cascas e crostas, ou então nus, como os nossos corpos complexos e frágeis.
De um lado da grande sala da exposição um anel de cipó com dois metros de altura, pintado de vermelho (Sem título). Umbral, unidade, cintilamento de uma área vazia, remetendo ao círculo Enso da tradição zen-budista, há muitas associações possíveis. Aproximando-se, é possível perceber a energia da artista dispondo do alongamento e trançamento das fibras, o esforço disciplinado de quem vai se apoderando da matéria orgânica, aprendendo seu modo de ser, transformando-se nela. Na parede oposta vem O sangue não tem cor, uma proliferação de agulhas metálicas com pontas circulares de feltros vermelhos, uma representação de hemácias esparramada pela parede compondo um círculo espiralado. Três metros de altura, mais que suficiente para envolver o corpo do visitante, fazendo ressoar pelo espaço o sangue que circula em suas veias. Entre uma e outra, a grande parede da sala, integralmente ocupada por Magna, um conjunto de dezenas de seios de texturas rugosas, maiores e menores, realizados em cerâmica de argila negra, distribuídos irregularmente ao longo de uma parede de dezoito metros de extensão. Espalhados no chão à frente dos seios, conectados a cada um deles por meio de fios grossos e tortuosos, “ovos” de um vermelho vivo feitos à mão em cerâmica. Os fios têm a flexibilidade próprias das lianas e cipós, que se vão retorcendo em busca da luz. A profusão deles cria um veio emaranhado que só amplia a relação entre seio e ovo, a troca de energia entre duas expressões do transbordamento da vida.
Vórtice consiste num relevo com a mesma coloração terrosa das esferas e parede da entrada. Um triângulo invertido, signo arquetípico da feminilidade e da água, não trouxesse ele à lembrança de um útero. Encaixado numa estrutura quadrangular, esse signo de natureza deslizante é construído por uma proliferação de círculos de diâmetros e alturas distintas, todos girando em ritmos próprios.
Arché, palavra grega que remete ao princípio de tudo o que existe, é moldada a partir de estruturas de um cacho de uva, aludindo à fractalidade de seu crescimento, isto é, por sua condição de objeto cujo crescimento obedece a um padrão que se repete em diferentes escalas. A obra reproduz outro símbolo arquetípico empregado pela artista: a vesica piscis, forma geométrica antiga resultante da interseção de dois círculos do mesmo tamanho, associada a uma pletora de significados, entre os quais o de símbolo da fertilidade feminina e o de portal para um plano superior. Com registros de seu uso já no período Neolítico, difundido em diferentes civilizações, a vesica piscis é uma forma simples, da qual se podem extrair figuras geométricas regulares como quadrado, triângulo etc. Por essa razão, é associada à geometria sagrada, nome que se dá a formas e estruturas geométricas naturais de ampla aplicação na arte e na arquitetura. Revestida em azul cobalto, cor transcendente, evocadora do mar e do céu profundos, capaz de aproximar o pequeno do imenso, Arché e seus dois anéis circulares interceptados, com suas bordas iradiantes, estão suspensos, solitários, rodeados de sombras num halo criado fora da vista imediata do visitante, um lapso no espaço expositivo, um convite à meditação sobre o fluxo constante da vida, à nossa fusão — nós, ínfimos, ao universo.Agnaldo Farias