2020
‘Este honesto turco’, disse ele a Pangloss e Martin,
‘parece estar em uma posição muito melhor do que reis. Também sei’,
disse Cândido, ‘que devemos cultivar nosso jardim.’ ”
Voltaire, em Cândido ou o Otimismo
Se há um começo, é provável que esteja ligado a um terreno que Sonia Dias comprou com o marido por volta de trinta anos atrás. Um lugar maltratado, alguns alqueires áridos, um desses típicos produtos decorrentes da falta de visão, de respeito pela natureza, de quem opta por deitar ao chão a cobertura de mato e árvores, remover pedras e deixar que as nascentes, desprotegidas, sequem à míngua. E isso quando é do conhecimento geral a importância das plantas para o fabrico do ar que respiramos. Imagine-se o que seria se não soubéssemos disso. Além dessa pequena devastação com a qual Sonia deparou — “nem praga nascia ali” —, havia também a proximidade ameaçadora da cidade, o crescimento de seus subúrbios acenando com ocupações lindeiras irreversíveis. Cumpria barrar essa expansão por meio de um oásis de vegetação densa. Havia ainda uma casa sem maiores atributos e um grande eucalipto pelo qual se apaixonou. Foram trinta anos de empenho, de estudo, de lida contínua com a terra, assistida por um jardineiro oriental, cujo conhecimento revelou-se decisivo, aprendendo com ele o que, como e onde plantar; quais vizinhanças entre plantas eram as mais favoráveis; os períodos; o cálculo associado ao reconhecimento da lógica vegetal; a parceria com as estações; a espera pela chuva — que não se pode garantir ao certo quando virá e, menos ainda, se virá de mais ou de menos. Aprendendo, acima de tudo, a não ter pressa. Trinta anos revolvendo a terra, entendendo-a, buscando compatibilizá-la com as espécies plantadas, escolhendo árvores e flores, objetivando colher sombras, cores e aromas. Consumiu muito trabalho produzir um chão ameno, torná-lo suscetível aos cuidados, permeável a eles e, finalmente, disposto a retribuí-los.
Sonia demorou para perceber-se artista, o que é mais comum do que se pensa, sobretudo entre mulheres, no geral destacadas à família e às realizações de ordem prática, que ela cumpriu ao mesmo tempo em que paralelamente se formou e atuou na área do Direito. O contato com a natureza, contudo, fez com que sua sensibilidade fosse aflorando de modo franco e sem volta. Rebentou dentro dela o resultado adormecido de certas experiências, cuja origem remonta à infância, como da vez, na altura de seus onze anos, em que deparou com uma frase sobre a importância da natureza, encontrada numa folhinha de calendário (não é fascinante e imprevisível como as revelações acontecem?). Antes dessa epifania, aos nove anos iniciou a prática do ballet clássico com a professora Alina Biernacka, levada ao longo de vinte e cinco anos; e o interesse desde a adolescência por filmes de kung-fu, que a levariam ao Tai chi chuan, entendido como forma de meditação em movimento, compreensão que a levou a se aprofundar em questões ligadas à espiritualidade.
A relação com a natureza, adensada com a aprendizagem advinda da observação e da intervenção em seu jardim, ensejou a documentação dos intrincados processos em curso. No caso particular da nossa artista, essa trajetória carregou traços das primeiras indagações formuladas pelos pensadores pré-socráticos, sobre a arkhé, a substância fundamental da Physis, a natureza, o princípio de onde tudo deriva e para onde tudo vai, “o fundo inesgotável de onde vem o kósmos”, assim enunciado por Marilena Chauí, que ainda adverte sobre o significado desse termo, qual seja, “ordem e organização da natureza e do mundo”. (1)
A fotografia favorece o registro dos fenômenos naturais, razão de ser de algumas imagens pertencentes à extensa série Somos um ponto visto pelas estrelas (2018/19). Refiro-me à sequência de imagens obtidas em contraluz, perto da entrada de uma caverna, com os raios de Sol filtrados pela folhagem da mata que a resguarda — lianas, cipós e porções das copas de árvores —, esbatidos pelos contornos irregulares que se vão escurecendo ao passo que emolduram o céu azul. Com essas fotos, Sonia nos propõe que o papel da luz na fertilização da terra envolve sua insinuação por frestas e fendas, operando reações fotoquímicas em espaços recônditos. Os predicados da fotografia obtida na captação de fenômenos e situações de toda a ordem fez com que rapidamente fosse adotada pelas expedições naturalistas, mas não só por elas. Demonstrando a fecundidade da relação entre a técnica fotográfica e a observação da natureza, Stefano Mancuso narra o impacto causado na comunidade científica pelo desenvolvimento da técnica de “time lapse, stop motion ou sequência de fotos — chamem como quiserem a fantástica técnica fotográfica — cinematográfica que permite visualizar em poucos segundos ou minutos de filmes de eventos que, em tempo real, levam horas ou dias (ou mesmo meses ou anos) para serem concluídos.” Graças a essa técnica, foi possível conhecer a habilidade motora das plantas e a existência de movimentos ativos, para ficar em um exemplo afinado com as pesquisas da nossa artista. (2)
Somos um ponto visto pelas estrelas não se resume à documentação de fenômenos. A rigor, ela, assim como a série que a precede — Ecos, de 2017, na qual a artista registra intervenções na paisagem — são afeitas ao âmbito da land art, arte na paisagem, além de outras, nas quais ela arranja corpos humanos na paisagem, que se caracterizam como fotos-performance. Pertencem ao primeiro grupo, além das cavernas fotografadas de dentro para fora, os buracos cilíndricos cavados no chão, espaços de passagens entre o interior e o exterior sugerindo a continuidade entre terra e céu. Em uma dessas fotos, da série Ecos, o cilindro converte-se em um círculo opaco, uma silhueta com luz em toda a orla, como o Sol eclipsado pela Lua. Inversão que liga uma pequena perfuração na crosta da Terra com o disco solar. Essa foto não se limita à observação de um fenômeno, mas coloca-se como construção da artista, o estabelecimento de correlações entre planos distintos, entre a natureza e o universo. Outras imagens aprofundam a ambiguidade: a floração de esporos, pontos de mofo, chapéus de cogumelos, sabe-se lá, que ganham corpo na medida em que absorvem os compostos nutrientes do chão ensombrecido e úmido; a sequência de imagens em que essas protuberâncias se convertem em barrigas estufadas, grávidas, com os umbigos projetados para fora e a pele apresentando estrias.
A partir dessas imagens e das quatro obras apresentadas nessa Radical — duas instalações, uma escultura e um vídeo, além do próprio ambiente em que estão colocadas—, Sonia Dias se afirma como produtora de mitopoéticas, no sentido que lhe atribui Marcel Detienne, qual seja, o mito como fonte imaginativa, não como estrutura e símbolos a serem traduzidos a partir de um mito preexistente, mas como modelo de construções poéticas autônomas. (3)
Isso fica claro com as imagens compostas por corpos enrodilhados em posição fetal sobre a superfície da água, sobre a terra, arranjados dentro de buracos. À alusão direta da terra como mãe que nos acolhe em seu regaço, cruza-se com menções aos nossos vínculos, semelhantes aos tropismos das raízes, tecnicamente, como explica Mancuso, o “crescimento direcional [...] em resposta a estímulos externos”. (4) Elaborando sobre a unidade do diverso, Sônia, assim como Anaxímenes, de Mileto, defendendo que a Terra se originou de uma liberação de ar – Pneuma –, que se metamorfoseava em fogo e daí em estrelas, em sua imagem com cinco corpos agachados em cinco buracos, conectados entre si por intermédio de cipós, formando uma estrela de cinco pontas, apresenta um signo que dispõe sobre nossa relação com esferas superiores, como se estivéssemos enredados numa ordem – cosmos – superior.A ideia de comunicação entre os seres, sejam eles vegetais, animais ou minerais, é muito cara a essa artista, como se deduz pelas imagens comentadas e naquelas em que vemos feixes de cipós vermelhos enrolados em troncos, isoladamente, ou abraçando um conjunto de árvores. O mesmo vermelho vivo, sanguíneo, crispado de leve como a superfície de um lago acusando a passagem do vento, é o tocante protagonista de três imagens, cada uma delas a clareira ocupada por um pequeno corpo nu enrodilhado, adormecido, placidamente acomodado em seu ambiente natural.
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A concepção, seleção de obras e desenho expográfico da exposição Radical, no Museu Oscar Niemeyer, foi um desses casos que merece ser explicado mesmo que sumariamente. A conversa com a artista, em seguida ao convite para assumir a curadoria do projeto, começou quando a seleção de obras já havia sido feita e pelo menos duas delas, deixando de lado as fotografias, já estavam sendo feitas. A compreensão dos aspectos basilares de sua poética por meio de longas conversas e, no meu caso, análises de suas obras anteriores, nomeadamente fotografias, entre as quais algumas pertencentes às séries discutidas, levou-nos a concluir pela necessidade de um ambiente único, um espaço projetado para tocar, mesmo os indiferentes ou alheados, num ponto essencial: nós e o mundo somos uma coisa só. Nasceu daí a construção de uma expografia dotada de iluminação tênue, sons baixos e graves, o aroma discreto das paredes recobertas de juta de trama espessa, embebida da mesma terra de seu sítio, em certa medida motor e matéria-prima de sua obra. Pareceu-nos imprescindível garantir ao espaço reservado à exposição um tratamento que impedisse que as peças apresentadas — fotografias, vídeo, escultura e instalação — fossem vistas como corpos autônomos, únicos. Realçar a singularidade de cada uma encobriria a conexão mútua, desviaria a percepção da troca fecunda e incessante que obras e visitante estabelecem com a temperatura do ambiente, com o ar, seu perfume seco, até com o som das pisadas e dos murmúrios, próprios de quem visita uma exposição de arte.
Além disso, havia a preocupação em se distanciar dos ambientes anódinos e cirúrgicos das salas de exposição, invariavelmente brancas, hospitalares, como se as obras de arte fossem doentes, de resto um padrão ainda em voga em nosso país (aliás, admitamos que mesmo os hospitais já vêm revisando esses cenários). Estamos em 2021 e ainda resiste a noção moderna, tributária da Bauhaus, consagrada pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, do “cubo branco” como parâmetro para espaços expositivos, pretensamente neutro, como se fosse possível que alguma arquitetura pudesse ostentar essa condição. (5)
As páginas finais deste livro trazem a documentação desse processo laborioso, braçal ao ponto do fatigante, que incluiu a artista, cercado de cuidados para que a poeira e a lama não exorbitassem os limites da sala, comprometendo a integridade das obras de arte das outras exposições em curso no museu.
Logo no centro da primeira sala instalou-se Grávidas: três protuberâncias erguem-se no tampo de uma grande base quadrada. O tampo e as elevações são feitos de terra e a base, pintada da mesma cor, solução que se prolonga pelas paredes da sala, pelas paredes de todas as salas. Vista à distância, Barrigas tem a aparência de algo situado entre uma maquete de escala reduzida e uma daquelas vistas aéreas que contemplamos desde a janela do avião, inacessíveis como uma paisagem dentro de uma redoma. Uma planície que parece habitada por casulos na luz suave do amanhecer; prenhes, estufados de substância vital irreprimível que escorrerá por seus cumes, como acontece com os vulcões em atividade, tão logo entram em erupção. Mas também podem sugerir os séculos seguintes às suas explosões, quando adormecem e seus cumes vão sendo arredondados pelo curso ininterrupto dos ventos.
A sala seguinte, sem iluminação direta, submersa na penumbra, ficou reservada para Gaia, 2021, um vídeo cuja projeção tem quase a mesma altura da parede. Nele, circulando em looping, tem-se uma daquelas aberturas circulares comentadas anteriormente, uma esfera/portal cavada num barranco, daquela que a artista lança mão para aludir à relação entre a terra e o ambiente. A imagem fixa e frontal da concavidade vai variando em virtude de uma névoa, o hálito mais ou menos denso que se desprende dele.
Primórdios divide com a A semente que somos, além de conjuntos de fotografias, a terceira e última sala. Composta por cinco esferas feitas de cipó enrolados, amarrados e suspensos, ligados uns aos outros por cipós pintados de vermelho, estruturando uma forma próxima a um pentágono, Primórdios é uma instalação que, como tal, afigura-se como um ambiente. Ela não ocupa propriamente um espaço, mas produz um espaço. Alguns tocos de troncos em seu interior convidam o visitante a avançar para sentar-se em um deles, rodeado por todos os lados da seiva que escoa por linhas dramaticamente tortuosas, por cima, por baixo, como as descargas elétricas que se distribuem pelas paredes das gaiolas de Faraday ou os raios de alta tensão despejados nas grandes bobinas criadas por Nicola Tesla. Se Barrigas nasceu de uma elaboração da artista cruzando informações provenientes de leituras míticas sobre nosso planeta com o comportamento de seu magma na reacomodação contínua da crosta terrestre, Primórdios remete à comunicação entre as plantas, aos fluxos de energia responsáveis pelas sinapses, à conexão e à interpendência entre tudo que existe. Adicione-se a isso a proposta de colocar o visitante no interior de uma reação em cadeia, um vórtice de força que sintetiza a dinâmica dos seres vivos. A semente que somos, por sua vez, deriva de uma conjectura da Física, uma distorção espaço-temporal popularmente conhecida como “Buraco de Minhoca”, celebrado nos filmes de ficção científica, sendo Interestelar o mais recente deles, uma espécie de túnel/atalho capaz de dar acesso quase instantâneo entre pontos distintos do universo, ou mesmo de universos diferentes, impossíveis de serem percorridos dentro dos padrões de distância escorados na mecânica clássica.
A produção dessa obra consumiu três mil sementes de flores de lótus desidratadas, além de fios de arame e de nylon. As flores de lótus entraram em virtude de seus predicados, nomeadamente o fato de simbolizarem pureza espiritual, associado ao modo como se desenvolvem em situações profundamente adversas. A maleabilidade do tecido, sua flutuação acentuada pelos seus módulos perfurados, dispõe sobre a vivacidade do sistema, onde cada parte afeta e é afetada pelas demais. A artista produziu essa obra inspirada pela ideia de esperança, de modificação do ser, da sua potencial capacidade de passar de um estado a outro.
Leitora atenta tanto de aspectos da vida tratados pela mecânica quântica quanto da importância da respiração, pessoa que convive com as plantas como uma possibilidade de compreensão de si mesma, a poética polimórfica de Sonia Dias deriva da certeza, como ela própria explica, de que o universo, em qualquer dimensão, do macrocosmo ao plano das partículas subatômicas, é um compósito energético. O que chamamos de universo é uma mescla de processos interdependentes, cujas particularidades confluem para um todo harmônico. Nosso planeta é um sistema vivo dentro de outro maior, como nós quando éramos fetos e nos comunicávamos com nossas mães pela via do cordão umbilical, situação que repomos intermitentemente, quando nos enrodilhamos, quando parecemos querer retornar para o colo da terra, nossa mãe.
NOTAS
1 – Marilena Chauí introduz esses dois conceitos com sua clareza contumaz em seu livro Introdução à História da Filosofia vol1. São Paulo: Cia das Letras, 2002, pp. 504 e 509.
2 – Stefano Mancuso – Revolução das plantas. São Paulo: UBU, 2019, pg 59 em diante.
3 – Marcel Detienne – A invenção da mitologia. RJ/Brasília: José Olympio/UNB, 1998.
4 – Mancuso, op. cit., pg. 30. O autor detalha a natureza dos principais estímulos: a luz, a gravidade, o contato com uma estrutura sólida, o gradiente de umidade, o oxigênio e o campo elétrico.
5 – Para uma história crítica da noção assinalada, consulte-se o livro de Brian O’Doherty – No interior do cubo branco. SP: Martins Fontes, 2002.